Em novembro no ano passado o Ministro Ricardo Lewandowski, Presidente do Supremo Tribunal Federal, anunciou duas novas metas nacionais para o Poder Judiciário em 2015, quais sejam, aumentar os centros de conciliação e resolver as demandas repetitivas.

A razão é simples. De acordo com levantamento feito com base no “Justiça Aberta”, banco de dados do CNJ, em março de 2014 havia nada menos que 60,4 milhões de processos em trâmite nas 9.920 varas de primeiro grau existentes no País. O Judiciário já dá mostras de que não conseguirá dar conta de toda essa demanda sozinho.

Essa realidade se reflete também no âmbito da previdência complementar fechada. Embora não exista levantamento preciso, fala-se em mais de cem mil ações ajuizadas em desfavor de entidades fechadas de previdência complementar fechada. Há quem diga que sejam muito mais.

Com a finalidade de enfrentar esse problema a Lei nº 12.154/2009 atribuiu à PREVIC a competência para “promover a mediação e a conciliação entre entidades fechadas de previdência complementar e entre estas e seus participantes, assistidos, patrocinadores ou instituidores, bem como dirimir os litígios que lhe forem submetidos na forma da Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996.” (art. 2º, inciso VIII).

Note-se, inicialmente, que a competência da PREVIC é restrita a conflitos envolvendo as partes que integram o contrato de previdência complementar fechada. Mesmo a competência arbitral, inserta ao final do dispositivo, deve ser lida em conexão com a parte inicial do dispositivo, sob pena de se desfigurar a finalidade para que foi criada a Autarquia.

Voltando nossos olhos mais atentamente para a competência arbitral verifica-se que a Lei nº 9.307/1996 (Lei de Arbitragem) restringiu seu objeto a “litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis.” Essa restrição foi reproduzida no artigo 1º, § 2º, do Regulamento de Mediação, Conciliação e Arbitragem da PREVIC, que consta atualmente do anexo I da Instrução PREVIC nº 10/2014, o qual define o campo preciso de atuação da Comissão de Mediação, Conciliação e Arbitragem – CMCA da PREVIC.

Segundo Carlos Alberto Carmona (1), há direito patrimonial disponível “quando ele pode ser ou não exercido livremente pelo seu titular, sem que haja norma cogente impondo o cumprimento do preceito, sob pena de nulidade ou anulabilidade do ato praticado com sua infringência.” Conclui, pois, que são arbitráveis “as causas que tratem de matérias a respeito das quais o Estado não crie reserva específica por conta do resguardo dos interesses fundamentais da coletividade (…)” (op. cit. p. 39).

A expressão “patrimonial” refere-se a qualquer direito que comporte expressão monetária, mesmo que de forma reflexa, o que ocorreria na hipótese de ato do qual possa decorrer o reconhecimento de dano material ou moral, por exemplo (vide artigos 186 e 187 do Código Civil).

No tocante à disponibilidade do direito é importante recordar que a previdência complementar possui caráter contratual, submetendo-se a um regime de direito privado e, por conseguinte, à vontade soberana das partes, por força de mandamento constitucional (art. 202, caput, CF/88). Dessa forma, como regra, deve-se considerar que a relação de previdência complementar cuida essencialmente de direitos disponíveis.

A exceção que se pode admitir são as situações em que a Lei estabelece norma cogente, de observância obrigatória pelas partes. Um exemplo são os institutos obrigatórios previstos no artigo 14 da LC nº 109/2001. Não é dado à entidade fechada, nesse caso, escolher entre prever esses institutos ou não no contrato previdenciário, embora haja espaço para discussão dos seus contornos específicos.

Essa conclusão decorre da lição basilar de José Afonso da Silva (2), “o Estado, ou o Poder Público, ou os administradores não podem exigir qualquer ação, nem impor qualquer abstenção, nem mandar tampouco proibir nada aos administrados, senão em virtude de lei.” É esse o princípio fundamental expresso no artigo 5º, inciso II, da Carta Magna, imposto a todos os cidadãos e à Administração Pública de forma especial.

Veja-se bem. Não só na ausência de norma legal está presente a disponibilidade das partes. Ela está presente também quando a Lei confere mais de uma opção para determinada situação. E faz-se presente igualmente quando a Lei utiliza expressões abertas, que comportam mais de uma interpretação (por exemplo, o conceito de contribuição extraordinária). Nesses casos trata-se de disponibilidade limitada, mas ainda assim com espaço para expressão da vontade dos envolvidos.

E a regulação? Podem as dezenas de normas expedidas pelo Conselho Nacional de Previdência Complementar e pela Superintendência Nacional de Previdência Complementar alterar a natureza dos direitos, tornando indisponível o que é essencialmente disponível?

Entendemos que não. Ou a regulação encontra fundamento direto na Lei – e esta é quem está limitando a disponibilidade das partes – ou não encontra, e deve ceder espaço à vontade dos contratantes. É o alerta que faz Daniel Pulino, no seguinte e lapidar excerto (3):

“Portanto, sempre que seja necessário estabelecer os pormenores que viabilizam o exercício dos direitos, o cumprimento da lei pelos sujeitos particulares (…), poderão ser editadas normas gerais e abstratas pelo órgão administrativo regulador (…), mas desde que não se inaugurem, não se criem direitos ou obrigações novas, não descendentes da própria lei (…). O importante é que os limites da lei sejam respeitados no exercício dessa regulação.”

Dessa orientação não se afasta Wagner Balera, para quem “É evidente que toda a atividade administrativa, tão intensa nesse setor, deverá ser objeto de regulação. Mas, como toda gente sabe, nosso regime é o do rule of law, ou da supremacia da lei e os comandos legais são autoaplicáveis.” (4)

Em suma, deve-se afastar a possibilidade de atuação da CMCA-PREVIC apenas e tão somente quando o litígio versar sobre matéria em que a Lei impõe uma única solução, ou quando o acordo eventualmente celebrado violar dispositivo expresso de Lei. O afastamento da possibilidade de composição pelas partes e de utilização da arbitragem com fundamento em argumentos meramente técnicos ou regulatórios, ou com base em interpretações da autarquia relativas a conceitos abertos utilizados pela legislação, não encontra guarida na doutrina, na Lei de Arbitragem e nem tampouco em nossa Constituição Federal.

(1) Arbitragem e Processo: um comentário à Lei nº 9.307/96. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2009, p. 38.

(2) Curso de Direito Constitucional Positivo. 23. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 419.

(3) Previdência Complementar: Natureza jurídico-constitucional e seu desenvolvimento pelas Entidades Fechadas. São Paulo: Conceito Editorial, 2011, p. 305.

(4) Sistema de Seguridade Social. 7. ed. São Paulo: LTr, 2014, p. 141.

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GUILHERME LOUREIRO PEROCCO é sócio-fundador do escritório Loureiro Advogados Associados e Membro da International Pension & Employee Benefits Lawyers Association – IPEBLA.